sábado, setembro 8

"Já clareou, Fabi, já clareou" - Texto de Nei Lopes

Amigos, um depoimento que muito me deixa emocionada e confiante desta estrada musical que escolhi. O mestre Nei Lopes escreve aqui sobre meu segundo trabalho "Quando o céu clarear".

JÁ CLAREOU, FABI, JÁ CLAREOU!

Em um texto recém publicado em livro (O racismo explicado aos meus filhos. Rio, Agir, 2007), escrevemos a certa altura sobre a “opção étnica” por pessoas de ascendência biológica e cultural mista. Acentuamos neste texto que, por exemplo, quando uma pessoa filha de um negro com uma descendentes de europeus ou vice-versa se reivindica como afro-descendente, o que ela está ressaltando ou querendo evidenciar é a parte de sua herança etnocultural que a faz ser uma discriminada em potencial e que, por isso ela assume em sua postura contra a discriminação e o racismo.
Escrita alguns meses antes de ouvirmos o CD Quando o céu clarear de nossa querida e talentosa amiga Fabiana Cozza, essa maravilhosa afro-italiana que o intenso movimento musical de Sampa colocou em nosso caminho, essa afirmação cai como uma luva não só no conceito do disco quanto na postura de Fabiana diante da vida.
Filha de negro sambista ‘gogó de ouro’ da Barra Funda, mas carregando um sobrenome com dois ‘zz’ que não deixa a menor dúvida, Fabi é isso. E, por isso, abre seu disco pedindo licença para incensar nossos ouvidos, nossa sensibilidade e nossa mente com um oloroso samba-de-roda de um dos mestres da recriação dos eternos temas do samba-de-roda baiano, Roque Ferreira. E feita essa aromática abertura, diz claramente a que veio.
Fabiana diz – e como diz! – na envolvente doçura dos já imortais Dona Ivone Lara-Délcio Carvalho, representantes da mais pura tradição lírico melódico dos terreiros do samba carioca. Depois, literalmente “arrebenta” num samba de meu ‘cumpádi’ Paulinho Pinheiro com Rubens Nogueira, que me remete ao mais vibrantemente negro das interpretações sambísticas da saudosa Elis Regina, dos tempos do Vou deitar e rolar e da Lapinha. Para, mais lá pra frente, fazer o mesmo, em Nação, me levando até à divina mulatice de Clara Nunes, numa recriação personalíssima do clássico boscoblanqueano. Aí, traz a jovem fidalguia do canto afro-mestiço de meus parceiro do Quinteto BP, uma das melhores coisas que São Paulo, em termos de arte não colonizada, produziu nos últimos tempos. E, então, depois de passar por outros sambas também da melhor qualidade, cai dentro, literalmente com força e coragem, de algo do qual há muito tempo eu desejava falar, que é a presença da tradição dos orixás na música popular.
Fissurado que sou na música tradicional afro-cubana, observo que em cada 14 faixas de cada CD que chegam lá da Ilha, direto ou por outras vias, é raríssimo que uma ou mais não sejam dedicadas às divindades africanas que vieram com nossos ancestrais escravizados, ajudando-os a resistir ao martírio e a construir as duas melhores tradições musicais do Planeta. Só que Cuba, por razões políticas e até econômicas é hoje a Meca das religiões de matriz africana, enquanto que o Brasil é esse vasto mercado neo-pop-pentecostal que nos polui olhos e ouvidos a cada girada do botão ou do controle-remoto e a cada esquina. Então, não é que Fabi teve a fé e a ousadia de fazer um disco em que quase metade das canções menciona orixás? E até chamou músicos cubanos para participar!?
Só essa coerência para mim valeria a obra e a produção. Mas por trás disso tem muito mais. Tem a força de uma cantora total e comprometida. Que duvido que daqui a pouco seja capaz de ‘dar um pulinho noutra praia’, só ‘de brincadeirinha’. Ou, cá entre nós, pra faturar uns trocados. Duvid-o-dó. Do borogodó. Porque Fabi, como artista e pessoa, é uma das criaturas mais íntegras que já conheci. E o céu para ela, com esse belíssimo disco (que muito mais que afro ou italiano é brasileiro, da silva), é claro que já clareou.

Nei Lopes
Seropédica, RJ, jul.2007.

Um comentário:

Anônimo disse...

Estive no Sesc Pinheiros no domingo, 16/09, e a sensação que tive é que havia vivido minha vida até ali, só pra viver aqueles momentos mágicos, tão plenos de beleza, arte, inteireza, fé, transcendência.
Tudo ficou mais claro, Fabiana, de fato iluminado, porque naquele palco estavam inteiras e íntegras todas as tuas verdades. Por isso nos sentimos tão tocados pela beleza da tua arte, pela profundidade das tuas verdades tecidas na força tua interpretação, que nos enredaram e tocaram.
Sou muito grata a você pela generosidade em partilhar sua arte conosco.
Ana Eloisa